segunda-feira, 2 de novembro de 2015

MAIS DO QUE FLORES E VELAS



02 de Novembro – dia de finados. Feriado nacional, melhor ainda quando ocorre em sexta ou segunda... mais um feriadão. ‘Bora visitar os parentes? Tanto os vivos quanto os mortos?

Dias atrás...

Cemitérios movimentados. Pessoas vestidas em trajes de faxina desfilam entre túmulos carregando baldes, vassouras, esfregões, rodos e toda sorte de produtos e materiais para limpeza. Remover o “limo” que se acumulou ao longo do ano, desde o último novembro; limpar os vasos com as flores mortas ou as artificiais desbotadas. “Raspar” o resíduo das velas também é tarefa pra estes dias. Alguns ainda se preocupam em retocar ou refazer a pintura, substituir um vidro quebrado ou uma foto envelhecida.

Para alguns é tarefa fácil, pois verticalizaram o sepulcro e ‘tá todo mundo ali’. Para outros é mais trabalhoso, porque a família é grande e os sepultados estão distribuídos por todo o campo santo. É preciso distribuir também as tarefas: “Fulana, você limpa o túmulo da vó, que eu e o mano vamos cuidar do do pai e da mãe. Quem terminar primeiro pega o da tia. ‘Vamo’ deixar o do vô pro final pra ‘nóis’ pegar junto, porque ‘tá’ mais sujo”.

E gradativamente o “ambiente” vai se tornando aparentemente melhor para o grande dia.

E chega o dia.

Cemitérios movimentados. Pessoas vestidas em outros trajes desfilam entre túmulos carregando vasos com flores e pacotes de velas. Alguns não levam nem uma coisa nem outra. Há quem prefere uma visita solitária – talvez o sepultado só receba aquela visita. Mas há também quem visite em grupo. De uma forma ou de outra, a movimentação e o colorido das flores vai tomando conta do campo santo, assim como o odor da parafina queimada.

Algumas visitas são rápidas, algumas duram o dia inteiro. Há quem se direciona a apenas um sepulcro, e há quem faça uma verdadeira romaria, tendo inclusive que traçar uma estratégia logística para conseguir visitar “todo mundo” a tempo. Alguns preferem nem ser vistos. Outros gostam de permanecer longas horas junto ao sepulcro de certo familiar, aguardando a renovação das condolências dos que passam.

Enfim, há uma grande variedade de comportamentos neste dia... assim como há variedade de flores há quantidade de velas... e de pensamentos e sentimentos.

Naquele túmulo majestoso o pai e a mãe olham a foto do filho ido há anos, vítima de uma enfermidade. Tanta influência, dinheiro e poder não impediram que tivessem que viver este momento ano após ano.

A senhora de pé olhando a foto do falecido esposo faz uma oração silenciosa e ainda questiona a Deus: “Por que o levou tão cedo? Eu precisava tanto dele!”

O viúvo sentado no túmulo onde repousa a esposa, o olhar fixo na lápide, como se estivesse olhando nos olhos da mulher também questiona: “Por que tu não te ‘cuidou’? Tanto que eu falei pra tu procurar um médico?”

A foto do jovem sorridente, tirada naquela festa, comove os três amigos que abraçados choram a recente perda do companheiro no trágico acidente.

Dois irmãos ajeitam os dois pequenos ramalhetes que acabaram de depositar sobre o túmulo da irmã que morreu pelas mãos de um marido violento. O sentimento de saudade ainda está misturado com um desejo de vingança.

Tem um túmulo que não recebe visita neste dia. É o do rapaz que, embriagado, causou o acidente onde morreram ele e as jovens do carro com o qual ele colidiu. As flores foram colocadas dois dias antes pela sua mãe. Dói muito o olhar que as pessoas lhe dirigem e os comentários que fazem, como se impusessem uma culpa que não lhe pertence.

A menininha de quatro anos, nas mãos do pai, acena para o túmulo e diz: “Tchau, vó. Depois eu volto!”

Quem é aquele parado diante do túmulo vazio, recém construído, com aquela imensa tristeza no olhar? É o rapaz cujo pai padece de uma grave enfermidade, para a qual não existe cura. No decorrer de sua romaria deparou-se com aquela nova sepultura, e lembrou a possibilidade de nos próximos dias estar ali sepultando seu pai.

Então, queridos, não são só flores e velas.

A verdade é que todos aqueles que por ali passam por estes dias, gostariam de não precisar passar por ali.

Mas se passam(os) é porque de uma certa forma o laço que existiu não se desfez. Portanto, não é um laço de sangue, de acordos ou contratos formais, de coisas construídas ou adquiridas juntos... É um laço de vida, que não se rompe com a morte. É um laço tão forte quanto o sentido que damos à vida uns dos outros.

Não quero com este artigo só descrever atitudes, comportamentos e pensamentos deste dia, mas convidá-los a refletir sobre os laços que mantemos, que rompemos e os que fortalecemos. Repito: o sentido que demos à vida dos que partiram, e que deles recebemos, constituem o vínculo que nos mantém unidos; assim, devemos continuar repetindo o mesmo com os que ainda estão conosco, fazer por eles o que deixamos de fazer pelos que partiram e recuperar o sentido que estamos perdendo em algumas relações.

A comunhão dos santos, conforme ensina nossa igreja, é isso: esse vínculo de amor e caridade que, em Cristo, une a todos os filhos e filhas de Deus, em qualquer lugar, aqui ou no céu. As flores e as velas que depositamos não são presentes aos mortos, mas símbolos da nossa fé, que garante que aqueles cujos corpos sepultamos, contemplam a Luz de Deus na Vida Eterna (Vela e Flor – Luz e Vida)

Mas não são só flores e velas.

É também oportunidade de confrontar a fragilidade e a limitação humanas com a força e a imortalidade dos laços de amor; de compreender que a morte virá a qualquer momento e de alguma forma; de acreditar que aqueles que passaram por nós não acabaram ali sua existência.

Ao entardecer deste dia de novembro, os cemitérios vão se esvaziando e silenciando, as velas se apagando, as flores murchando ou desbotando... até o próximo ano, quando tudo de renova. O dia 2 passa rápido. A morte passa rápido.

A vida que se renova com a morte, permanece para sempre.


Nas flores e nas velas, a certeza dessa verdade.